Literatura Fundamental e Categorias Profissionais no Ensino do Yoga
Atualizado: 17 de jul. de 2023
Introdução
Este texto interessa a praticantes, instrutores e formadores de yoga, mas também a todos aqueles que pretendem aprofundar os seus conhecimentos sobre esta milenar cultura indiana, atualmente património cultural imaterial da humanidade, praticado em todo o mundo civilizado.
Começamos por evidenciar algumas mudanças paradigmáticas e metamorfoses ocorridas no yoga das sociedades ocidentais pós-modernas para depois perspetivar tipologias de praticantes, instrutores e formadores. A nossa reflexão inclui algumas considerações sobre a profissionalização do ensino do yoga que pressupõem uma progressão lógica na aprendizagem técnica e teórica. Evidencia-se, por outro lado, o percurso formativo, são referidos textos estruturais da tradição yoguica, de leitura obrigatória no processo contínuo de aprendizagem. São indicados dois livros que sugerem temas para estudo, um deles aborda a forma como a república da Índia, país onde surgiu o yoga, estabeleceu quatro categorias para o ensino profissional do yoga.
Modificações paradigmáticas no moderno yoga
O yoga no Ocidente encontra-se amplamente difundido, é praticado em diversas instituições publicas e privadas. Com a oferta e procura de aulas, workshops e cursos de yoga, importa refletir sobre diferentes níveis de prática e conhecimento das matérias, uma vez que, como em qualquer profissão, o instrutor de yoga passa por um longo percurso de aprendizagem contínua. Na opinião de Mircea Elíade, o yoga ancestral apresentava uma estrutura iniciática e o guru transmitia os seus ensinamentos aos discípulos, mas ninguém aprendia yoga sozinho (com vídeos, áudios ou livros). Aquele que ensinava conhecia previamente, devido à sua experiência, as armadilhas do ego no percurso de autodescoberta da consciência e a via para a existência desformatada.
Atualmente, devido a vários fatores, o normal parece ser um olhar desconfiado sobre o empreendedorismo dos modernos gurus e as histórias de aproveitamento emocional dos alunos, a relação guru-shishya (mestre-discípulo) gradualmente vai desaparecendo do horizonte no moderno yoga postural.
No entanto, é bom lembrar a progressão natural dos estudantes do yoga, conforme referem o Śiva Samhita, o Gītā e outros śastra indianos (textos clássicos considerados sagrados ou autoridade). Estudante era aquele que se dedicava à aprendizagem yoguica e ao cumprimento das tarefas diárias. Existiam diferentes graus de estudantes e praticantes: desde o interessado e inexperiente que ouvia e, de seguida, tudo esquecia, até ao devoto e estudante motivado, vigoroso e sábio, a ponto de transcender a existência condicionada (pelo sofrimento humano). Do lado dos que ensinavam, após doze ou mais anos de aprendizagem contínua e normalmente só depois da morte do guru, estão os instrutores e formadores. Sucede, porém, que esta dinâmica se perdeu com a aculturação do yoga moderno postural às sociedades ocidentais. Contudo, o antigo sistema guru paramparā (aprendizagem através de um guru e da sua tradição) reifica nas escolas ortodoxas de yoga onde, em muitos casos, estas constituem NRM ou Novos Movimentos Religiosos, derivados do Hinduísmo, como por exemplo, a Brahma Kumaris, Ananda Marga, Hare Kṛṣṇa e a Arte de Viver.
Profissionalização do ensino do yoga
Antigamente o yoga indiano era ensinado por um mestre, mas no yoga moderno postural são maioritariamente as instituições (estúdios e escolas de yoga) a substituir o lugar daquele. O ensino do yoga profissionaliza-se e são necessárias regras para definir o acesso à profissão, a formação contínua, o estatuto dos instrutores e a defesa dos consumidores. As instituições e os formadores do yoga, incluindo as universidades, criaram modelos de percursos formativos técnicos e académicos. Enquanto a dimensão técnica existe há várias décadas em Portugal, os estudos académicos emergiram nos últimos anos e hoje incluem teses, dissertações, revistas e outras publicações científicas.
Antigamente não existiam aulas nem acessórios para praticar yoga, nem categorias profissionais (estagiário, instrutor, professor, mestre) mas atualmente é necessário refletir sobre os novos modelos. Qual a nomenclatura a adotar para os profissionais de yoga? instrutor, professor ou técnico? Se, por um lado, a palavra instrutor lembra profissionais do ginásio ou da condução, que normalmente detêm estudos intermédios, do outro lado está a palavra professor(a) que nos lembra uma carreira profissional no ensino, a que poderá corresponder habilitação elevada. Entretanto, a palavra mestre também poderá ser perspetivada nas diferentes dimensões técnica, académica, espiritual.
Os seguros profissionais, nomeadamente de responsabilidade civil e de acidentes de trabalho, a remuneração, a fiscalidade, a formação contínua, são algumas das áreas importantes que importa refletir, no contexto educativo do moderno yoga postural.
Para ensinar meia dúzia de posturas talvez não seja necessário possuir habilitações elevadas. Contudo, à semelhança da mudança paradigmática no ensino do yoga, os instrutores substituíram os gurus, as práticas ascéticas nas florestas deram lugar às aulas nos shalas e nos ashrams urbanos, o novo modelo educativo e pedagógico do moderno yoga postural presente na cultura portuguesa impõe necessariamente mais especialização e melhores habilitações e competências no ensino (saber ensinar é diferente de saber praticar). A formação contínua e a evolução no domínio técnico e académico são transversais a todas as atividades profissionais. O ensino profissional do yoga não é exceção. Este é realizado, cada vez mais, de forma profissional devido às exigências da concorrência e dos consumidores modernos (os alunos que pagam mensalmente as aulas).
O percurso formativo
Face à existência de variadíssimas tipologias e conteúdos, de escolas e tradições yoguicas, é difícil definir com segurança e eficácia um tronco educativo no yoga. As cosmovisões do yoga tântrico, do yoga "vedantino" e do yoga clássico de Patañjali, por exemplo, implicam anos de estudo e prática para se alcançar algum conhecimento minimamente satisfatório. Acresce que o ensino moderno do yoga, incluindo o das tradições antigas, obriga a uma reflexão contínua e refinada do processo de transmissão de conhecimentos e alguns instrutores, embora fisicamente aptos e tecnicamente bons, carecem de competências pedagógicas para transmissão fidedigna da informação e de conhecimento da literatura fundamental.
Categorias profissionais na Índia
O caso indiano é paradigmático, constitui um exemplo a relembrar, sobre como esse país estabeleceu quatro categorias para o ensino profissional do yoga. O remanescente texto sobre este tópico foi extraído da minha dissertação de mestrado e pode ser lido aqui.
Foi criado o superministério AYUSH que regula e supervisiona as diversas medicinas alternativas. Na sequência da criação do dia mundial do yoga, no ano de 2015, o AYUSH e o Quality Council of India, criaram estruturas e um esquema favorável à regulamentação de competências e certificação dos profissionais de yoga. O programa é de adesão voluntária e não criou stress nas comunidades yoguicas locais. Lançado a 22 de junho desse ano, o programa proporcionou incentivos e benefícios para os profissionais, a saber: viagens no dia mundial do yoga, inclusão dos profissionais certificados na página internet do ministério AYUSH, oportunidades de empregos em escolas e colégios públicos, em outras instituições governamentais e oportunidades de recrutamento no estrangeiro. O programa incluiu a produção de manuais, elaborados por um conselho consultivo que integrou os principais líderes indianos do yoga. Foram criadas quatro categorias de competência e adotaram-se critérios internacionais de qualidade, em particular a norma ISSO/IEC 17024: 2012. Atualmente os quatro níveis são: instrutor, professor, mestre, ācārya. Os exames de acesso à profissão podem ser efetuados à distância e online em qualquer lugar do mundo. O esquema de certificação inclui níveis de conhecimento e níveis de competências técnicas. Estes níveis estão sujeitos a uma pontuação e classificação. Por exemplo, no grau de instrutor, o conhecimento teórico ocupa 30% e as competências técnicas valem 70%. A rubrica do conhecimento divide-se em introdução ao yoga e práticas yoguicas, introdução à psique e ao corpo humano. Quanto à competência técnica, o nível inicial inclui explicações e práticas da saudação ao sol, purificações orgânicas, posturas do yoga, técnicas de respiração e meditação, como ensinar os alunos e competências do instrutor. Quanto ao grau de professor de yoga, a pontuação distribui-se entre 50% para os conhecimentos teóricos e 50% para as competências técnicas. A parte teórica engloba os princípios fundamentais do yoga, introdução aos textos, anatomia, fisiologia e dieta, teoria da comunicação. As práticas do segundo nível reforçam o nível anterior e incluem a prática de ministrar aulas. A importância postural é reduzida em 5% e reforça-se o ênfase nos princípios fundamentais do yoga.
Estrutura do nível 1 – grau de instrutor
• Introdução ao yoga
• Introdução ao haṭhayoga
• Introdução ao Patañjali yoga sūtra
• Introdução aos sistemas humanos, yoga e saúde
• Yoga para o bem-estar e na gestão do stress
• Movimento das articulações
• Purificações orgânicas, saudação ao sol e várias posturas
• Técnicas de respiração e de meditação
• Conhecimentos sobre como ensinar e comunicação
• Competências para ensinar as práticas
• Competências e princípios para os principiantes
• Competências para o trabalho com grupos
Estrutura do nível 2 – grau de professor
• Ensinamentos e filosofias do yoga
• Teoria do haṭhayoga e principais textos
• Anatomia humana, dieta e psicologia
• Competências de comunicação
• Purificações orgânicas, posturas e saudação ao sol
• Gestão da energia vital e meditação
• Práticas do ensino de aulas
Concomitantemente, a Índia afastou-se de uma visão do yoga como algo meramente físico ou desportivo. A opção enveredada foi de agrupar as atividades de yoga num ministério, semelhante aos modernos ministérios da saúde ocidentais, que incluem as medicinas complementares.
Peter Connolly
O autor é doutorado e ensina yoga há mais de trinta anos em diversas instituições. O seu livro, A Student Guide to the History and Philosophy of Yoga, é um bom guia de estudo sobre as diferentes cosmovisões e técnicas yoguicas. Peter aborda o yoga no contexto budista e jainista, mas também o yoga védico e os desenvolvimentos sectários no shaivismo, shaktismo e tantra, e por último, no yoga moderno.
Enquanto que o modelo educativo indiano, proposto pelo AYUSH, não contempla os yogas além da cosmovisão védica, o livro de Connolly efetua uma abordagem mais abrangente das tradições yoguicas. Fica a ideia que o estudo do yoga dura uma vida. E por onde começar?
Literatura e práticas importantes
Se o interesse do leitor é ensinar yoga postural de forma profissional, em escolas, associações, ginásios e outras instituições, temporariamente coloque de lado o estudo do yoga nas cosmovisões heterodoxas pois são menos populares. Mais tarde poderá aprender sobre essas tradições e aceder a centenas de textos.
O yoga mainstream, popular, é o yoga moderno postural pelo que é conveniente o estudo da anatomia humana e das técnicas do haṭha e do rāja yoga, para começar. Se verificar os conteúdos programáticos dos cursos de instrutores de yoga, quer sejam ministrados na Índia (iniciaram formalmente no ano de 1969 neste país), em Portugal ou nos Estados Unidos, há um tronco literário comum que inclui textos védicos (bhagavad gītā, yoga sūtra) e também referências a textos tântricos (haṭhayogapradīpikā, goraksaśatakạ, kulārṇava-tantra). A aprendizagem das técnicas de haṭha e rāja yoga consiste principalmente nas posturas (āsana), respirações e gestão da energia vital (prāṇāyāma), gestos físicos e energéticos (mudrā), contrações neuromusculares (bandha), recolhimento sensorial (pratyāhāra), técnicas de concentração (dhāraṇā), relaxamento e mantra, meditação (dhyāna) e, não menos importantes, as éticas yoguicas (yama e niyama).
Na nossa opinião, é preferível iniciar o percurso com o estudo dos textos yoga sūtra, haṭhayogapradīpikā, depois a bhagavadgītā, o śivasaṃhitā, o gheraṇḍasaṁhitā e alguns dos upaniṣad. É fundamental entender a cosmovisão subjacente à tradição clássica do yoga de Patañjali, pelo que é aconselhável a leitura dos comentários de Vyāsa e de Bhoja ao yoga sūtra, assim como o texto seminal do sāṁkhya clássico: o sāṁkhyakārikā de īśvarakṛṣṇa.
A dedicação ao estudo (svādhyāya) exige, no mínimo, uma a duas horas diárias pelo que a leitura dos textos e respetiva prática, acompanhadas de instrutor(a) experiente, poderá durar entre dois a cinco anos.
Upaniṣad relevantes
Bṛhadāraṇyaka Chāndogya Taittirīya Aitareya Kauṣītaki Kena Kaṭha īśa Muṇḍaka Mahānārāyaṇa Māṇḍūkya Śvetāśvatara
Yoga upaniṣad
Kṣurikā Nādabindu Amṛtabindu Dhyānabindu Tejobindu Yogaśikhā Yogatattva Yogakuṇḍalini Yogacūḍāmaṇi
Literatura nātha fundamental
Haṭhayogapradīpikā Goraksaśatakạ Gheraṇḍasaṁhitā
Literatura sobre o yoga de Patañjali
Pātañjalayogaśāstra Pātañjalayogaśāstrabhāṣya Tattvavaiśāradī Kitābpatañjala Rājamārtanḍa Yogavārttika
Literatura sobre a cosmovisão sāṁkhya
Sāṁkhyakārikā Suvarṇasaptati Sāṁkhyavṛtti Sāṁkhyakārikābhāsya Sāṁkhyapravacanabhāṣya Yuktidipika Jayamaṅgala
O yoga é uma tradição prática, mas a compreensão ontológica e epistemológica da cosmovisão, a prática das éticas fundamentais, a qualidade na transmissão dos conhecimentos, são características das instrutoras mais avançadas (e não apenas a flexibilidade física).
No yoga não deve existir competição, mas há que reconhecer o mérito e autoridade, o esforço e sabedoria, de muitos profissionais competentes que dedicam anos à prática e à experimentação de estados alternativos da consciência, referidos em diversos textos.
Conclusão
Embora seja difícil estabelecer uma sequência textual inequívoca para o estudo do yoga, devido à variedade das cosmovisões em jogo, dos vários yogas antigos e modernos (com milhares de anos de história, apenas alguns textos foram traduzidos para o inglês), a tipologia mais praticada na atualidade é o haṭha yoga. A sugestão de leitura, acima referida, não pretende de forma alguma estabelecer qualquer standard no percurso formativo (em Portugal existem formações muito diferentes), apenas manifesta a opinião do autor que também é praticante e formador de yoga. Se lhe fizer sentido a prática regular, a reflexão crítica continuada, as leituras orientadas, então experimente começar pela nossa sugestão. Há muitos livros e a internet é uma fonte inesgotável de recursos, mas o tempo disponível e a seriedade com que encaramos o estudo do yoga obriga a fazer escolhas mais conscientes.
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