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Estudo da Ioga Clássica

Atualizado: 17 de jul. de 2023


O Estudo da Ioga Clássica Através das Ciências da Religião


Este texto é uma reflexão sobre o estudo da ioga clássica na sua relação com as ciências do religioso e do espiritual. Começo por problematizar terminações linguísticas aplicadas ao conjunto das práticas – ioga, ióga, yoga, yôga – e se essas práticas constituem ou não alteridade no contexto das sociedades contemporâneas.


Inclui-se, de seguida, um curto questionamento sobre o contributo das ciências da religião no estudo moderno do darśana da ioga clássica, uma vez que o sistema Patañjaliano é uma cosmovisão teísta que se afirmou em território indiano, provavelmente a partir do século IV da era comum. Termino com alguns tópicos sobre o ensino da ioga em contexto universitário, nas suas dimensões técnica e académica.


A minha posição enquadra-se em três diferentes papéis ou funções: o de observador das realidades da ioga, o de praticante da ioga há trinta anos, e o de aprendiz ao longo de uma vida.

Para alguns indivíduos da comunidade ióguica portuguesa existe a convicção de que a transliteração da palavra योग em devanagárico para a sua correspondente romanizada iog, ioga, ióga, yoga, yôga, por via da aplicação das regras internacionais de transliteração IAST, implicaria uma modificação das práticas uma vez que a terminologia adotada pareceria diferente da fonética original.


Sucede, no entanto, que o último (des)acordo ortográfico da língua portuguesa, concordemos ou não, modifica o estrangeirismo yoga para a ioga, no feminino. Acresce que quando nos referimos à ioga moderna significa apenas que vivemos num tempo moderno, ou talvez pós-moderno, e que existem práticas da ioga que são ensinadas nas sociedades contemporâneas. De qualquer forma, é comum encontrarmos em textos contemporâneos a utilização das mais variadas terminologias e interpretações.


“É frequente escrever-se yoga, yôga, ioga ou ióga , e a palavra tanto representa um conjunto de práticas como o resultado final das mesmas.”


Diferente é a questão de sabermos se as práticas da ioga das sociedades contemporâneas são as mesmas que existiam nas sociedades antigas. Isto é semelhante a indagarmos sobre se o Cristianismo ou o Budismo ou o Hinduísmo, por exemplo, são monólitos inalteráveis ao longo dos milénios ou se também se transformaram e aquilo que hoje temos é ou não igual ao praticado pelos seus fundadores.


Acresce que termos como ‘neo-hinduísmo’ e ‘neo-vedanta’ são frequentemente utilizados por académicos europeus, mas não é comum utilizarem-se os termos ‘neo-cristianismo’ ou ‘neo-judaísmo’, o que pode sustentar a tese de alguns de que o processo de descolonização da academia ainda não está concluído.


Por outro lado, essa comparação entre práticas da ioga moderna e da ioga ancestral seria possível se conhecêssemos bem, através da filologia, da arqueologia, da antropologia, da história e de outras ciências, o pensamento e a cultura subjacente dos modos antigos e modernos de vida que pretendemos comparar. Existe a possibilidade de muitos de nós utilizarmos um juízo apriorístico eurocentrado ou etnocêntrico, lançado nas culturas orientais, uma vez que há indícios de que não se reúnem nem ferramentas linguísticas nem bagagem cultural necessária para essa comparação e, consequentemente, ignorámos a realidade dos povos antigos e as suas práticas espirituais. A comparação entre realidades distintas pode não ser exequível para alguém que utilize as ferramentas da reflexividade e da ética para interrogar o Outro, sem lhe projetar ideologias culturais eurocentradas.


“O processo de descolonização pode não estar concluído e muitos indivíduos ainda funcionam com grelhas mentais culturalmente eurocentradas.”


A maneira como praticamos posturas, a forma como estas são hoje ensinadas nos estúdios da ioga pelo mundo inteiro, jamais foi proveniente na Índia antiga (DE MICHELIS, 2004; SINGLETON, 2010), pelo que se torna irrelevante e estéril discutirmos se passamos a designar o conjunto das práticas por ioga, ióga, yoga ou yôga, quando as aulas incidem maioritariamente no ensino postural e as disciplinas da ioga interna – dhāraṇā, dhyāna e samādhi – foram excluídas do ensino. Os artefactos linguísticos são insuficientes para designarem as variadíssimas tipologias da ioga e, na maioria das vezes, ao invés de servirem o objetivo da ioga, a União, acabam por insuflar os egos dos praticantes através de discussões intermináveis.


Se estudarmos as metamorfoses e sincretismos ocorridos na ioga moderna, após a sua entrada no Ocidente durante a vida de Swami Vivekananda, constatamos que a ioga na maior parte dos casos se edificou nas práticas essencialmente físicas com propósitos terapêuticos e foram descartados os valores éticos e espirituais, bem como foi descontextualizada a cultura original. Sobrou um produto híbrido, talvez tão poluído como o mundo que o sustenta.


A palavra religião é proveniente do latim e pode significar “religare” – juntar ou unir – ou “re-legere” – recolher ou ler de novo. O seu significado foi metamorfoseado ao longo dos séculos, entre os Romanos e os Cristãos, e o interesse em estudar a religião surge apenas com o mundo moderno ocidental (JENSEN, 2014: 13-14) e nunca no Oriente.


As ciências da religião são um conjunto de disciplinas que evidenciam diferentes saberes e olhares dirigidos às culturas religiosas e às culturas espirituais. Se é verdade que no sânscrito não existe uma palavra que signifique religião, não é inverdade o facto de pensadores ocidentais terem concebido o termo religião, com a pretensão de aplicabilidade universal que de facto não é exequível por causa da polissemia e dificuldade concetual daquilo que entendemos como religião. Se o século XIX foi o período dos ‘ismos’, a secularização e a New Age, o desencantamento do mundo e o posterior reencantamento, entre outras metamorfoses socioculturais, permitiram que a presente conotação atribuída à palavra espiritualidade, entre os praticantes da ioga moderna, se afastasse dos significados  religiosos, o que a bem dizer constitui apenas meia verdade e nos remeteria para outros estudos mais específicos além desta curta reflexão.



Das ciências da religião fazem parte a história das religiões, a antropologia das religiões, a psicologia das religiões, a filosofia das religiões, a sociologia das religiões, o direito das religiões, entre outras ciências, que se ocupam do estudo das religiões e das espiritualidades.

Embora na opinião das praticantes portugueses a ioga não seja religião, foi considerada uma filosofia espiritual com dimensão terapêutica. Estes resultados foram aferidos na minha dissertação de mestrado, através de questionário online tipo bola-de-neve no ano de 2018. Sucede, no entanto, que as palavras “religioso, espiritual, e secular não se excluem mutuamente, mas pelo contrário estão relacionadas, misturadas, e conectadas, especialmente quando utilizadas para descrever yoga” (PINGATORE, 2015: iii).


Acresce que descrições como  “Filosofia de vida” e “Espiritualidade” são diferentes representações da mesma cosmovisão, no que respeita ao caminho espiritual adotado pelos indivíduos praticantes regulares de técnicas físicas e mentais da ioga (HENRICHSEN-SCHREMBS, 2008: 139). Por outro lado, existe uma interconexão subjacente entre terapia, espiritualidade da ioga clássica e religiosidade (FIELDS, 2001: 83-138).


A ioga clássica é uma cosmovisão teísta em que Īśvara é o primeiro dos espíritos ou consciências. Não é fácil generalizar sobre a ioga pois a palavra é polissémica, existem tipos e estilos muito diferentes da ioga milenar, mas as práticas atuais envolvem sempre técnicas físicas, mentais e espirituais. Porém, o objetivo original de todas as formas da ioga era erradicar o sofrimento humano, e não aquele que foi (re)construído pelas modernas sociedades ocidentais: ferramenta terapêutica ou mais um produto de auto-ajuda para a busca da felicidade mundana. A ioga nunca teve como objetivo final a felicidade humana porque esta é ainda um estado dual dependente dos humores e do sistema nervoso, mas, pelo contrário, os iogues clássicos procuravam o autoconhecimento, a consciência reflexiva que supera a ignorância existencial e a união com deus.


“A ioga moderna é considerada por muitos adeptos uma filosofia espiritual e terapêutica.”


Se a cosmovisão teísta da ioga clássica preconiza uma soteriologia a jusante da vida material ordinária, esse processo pode designar-se por Espiritualidade (JANIS, 2007: 17). Para estudar a dimensão espiritual da ioga podemos utilizar as disciplinas, atrás referidas, das ciências das religiões. A ioga pode ser compreendida do ponto de vista da história, da cultura, da antropologia e de muitas outras ciências das religiões. No fundo, pretende-se obter um olhar panorâmico sobre a espiritualidade e todos esses pontos de vista contribuem para aumentar os conhecimentos sobre a meditação, a contemplação e estados mais refinados da consciência. Concomitantemente, as ciências da religião constituem uma possibilidade, entre muitas outras, de compreender as dinâmicas da ioga no passado e no presente, respeitando os textos das tradições antigas e as linhagens originadas na Índia e no Ocidente moderno


“As ciências da religião permitem um referencial empírico aplicado ao estudo da espiritualidade da ioga.”

O curso de pós-graduação em instrução de yoga, que irá iniciar em setembro de 2019 na Universidade Lusófona, beneficia de um conjunto de saberes e de profissionais competentes que têm por objetivo o ensino da ioga, no respeito pelo seu contexto cultural, língua e características específicas da espiritualidade indiana. Pretende-se a compreensão de uma realidade sociocultural, enraizada cada vez mais nos hábitos dos portugueses, e que permite aos praticantes o autoconhecimento profundo da mente e experienciar a tranquilidade do coração.


No limite, a experiência ióguica pode ser equivalente à experiência religiosa, e as práticas podem proporcionar aos adeptos uma dimensão interna inefável e inenarrável, entre o numinoso e o cessativo (SARBACKER, 2005), na qual termina a dicotomia entre sagrado e profano e o praticante participa, passivamente ativo, num Cosmo profundamente organizado e hierarquizado.


Bibliografia

DE MICHELIS, E. (2004).A History of Modern Yoga: Patañjali and Western Esotericism. London: Continuum. FIELDS, G. (2001). Religious Therapeutics: Body and Health in Yoga, Ayurveda, and Tantra. Albany: State University of New York Press. HENRICHSEN-SCHREMBS, S. (2008). Pathways to Yoga – Yoga Pathways : Modern Life Courses and the Search for Meaning in Germany. PhD Thesis, Bremen University. JANIS, S. (2007).Spirituality for Dummies. New Delhi: Wiley India Ltd. JENSEN, J. S. (2014). What is Religion? New York; Abingdon: Routledge. PINGATORE, K. (2015). Bodies Bending Boundaries: Religious, Spiritual, and Secular Identities of Modern Postural Yoga in the Ozarks.Missouri State University. SARBACKER, S. (2005).Samādhi : the numinous and cessative in Indo-Tibetan yoga. Albany: State University of New York Press. SINGLETON, M. (2010). Yoga Body: The Origins of Modern Posture Practice. New York: Oxford University Press.


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