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A Kriyā Ioga no Universalismo dos Peregrinos do Cosmos

(artigo publicado na revista Yoga Dharma)


Resumo: O Grupo Filosófico Espiritualista Peregrinos do Cosmos foi fundado em Portugal, no ano de 1984, por Maria Helena Charula de Sousa. Com ambições universalistas, as atividades da instituição incluíram o ensino de doutrina e prática da ioga indiana, sincretizada com a Teosofia de Blavatsky e o Espiritismo. Os dados obtidos foram recolhidos através de entrevistas etnográficas e observação participante ao longo de dez anos. Este artigo pretendeu explorar as estruturas da crença relacionadas com a kriyā ioga de Paramhansa Yogananda, que operou na base filosófico-espiritualista do grupo de Helena. Constatámos no nosso estudo a ocorrência de metamorfoses nas estruturas de crença, operadas por via de sincretismos religiosos que, no caso concreto, ancoraram o seu desenvolvimento nas teorias da ioga indiana e alavancaram as práticas da ioga moderna em Portugal como opção no universo espiritual contemporâneo.


Palavras-chave: Ioga, Kriyā Yoga, Yogananda, Peregrinos do Cosmos.



Introdução

Maria Helena Charula de Sousa nasceu no ano de 1922, em Moçambique, e faleceu em Portugal no ano de 1999. Exerceu a profissão de tradutora e datilógrafa. Foi casada e divorciada, não deixou descendentes. No entanto, foi na área da espiritualidade que Helena mais se destacou e na instituição que fundou em Portugal, o Grupo Filosófico Espiritualista Peregrinos do Cosmos.

Este artigo explora alguns dos aspetos do espiritualismo moderno e sua ligação com a ioga[1] indiana, em particular a kriyā ioga de Paramhansa Yogananda, que foram estruturantes no pensamento e obra de Helena. A escolha de Helena para este trabalho deve-se ao facto de representar um bom exemplo de ocorrência de fragmentações e metamorfoses nas estruturas de crença[2], operadas por via de sincretismos religiosos que, no caso concreto, suportam o seu desenvolvimento na teoria e prática da ioga moderna.

A ioga é referida em textos dos missionários portugueses do século XVI, mas as aulas posturais para grupos só iniciaram em Portugal no ano de 1973 (Hayes, 2019). Existem diversas tipologias da ioga moderna (De Michelis, 2004; Newcombe, 2017; Singleton, 2010).

Neste artigo seguimos o plano de texto do género TOP, utilizado em disciplinas como a história, a filosofia e nas humanidades em geral, onde os assuntos são estruturados por tópicos e incluem a revisão da literatura pertinente.

Utilizámos o método etnográfico, nomeadamente as entrevistas e as observações participantes. Entrevistámos indivíduos que foram próximos de Helena e gravamos os seus testemunhos. Por uma questão de reserva da vida privada, ficcionamos os nomes dos nossos informadores. Abel é profissional de osteopatia e Beta trabalha num escritório. Residem em Carnaxide, são casados, e durante muitos anos pertenceram ao círculo mais próximo de Helena. Cristina é reformada e reside no Porto, conheceu Helena em Moçambique, e as conversas existentes foram gravadas via Skype. Dora, solicitadora e residente na zona de Alfragide, ocupou lugar de destaque na instituição do Grupo Filosófico Peregrinos do Cosmos, fundado em Portugal por Helena. Contactámos dois elementos da direção da Comunidade Hindu de Maputo, Jayes Sacarlal e Mahendracumar Chhagan, e um dos sobrinhos de Helena. No ano de 1995, Helena entregou-nos alguma da sua correspondência, proveniente da instituição Lucis Trust e relacionada com a obra da teosófica Alice Bailey.

Acresce o nosso diário de campo, onde registámos notas provenientes da observação participante nos eventos da instituição, entre os anos de 1989 e 1999, incluindo as relativas às aulas teóricas ministradas por Helena aos domingos, no Grupo Filosófico Espiritualista Peregrinos do Cosmos, que suportam as descrições temáticas na parte final do presente texto.


A importância da comunidade hindu de Moçambique no pensamento de Helena

Sabemos pouco da sua infância em Moçambique[3]. Embora cristã, não seguiu o formalismo católico e as cosmovisões indianas estiverem sempre presentes no seu pensamento, em particular a haṭha ioga e a kriyā yoga de Paramhansa Yogananda. Por outro lado, ainda em Moçambique, desenvolveu características próprias do Espiritismo que viria posteriormente a aprofundar em Portugal. A ioga, o kardecismo e a teosofia foram os principais pilares que sustentaram o sincretismo filosófico-espiritual operado em Helena.

Mahendracumar Chhagan refere que em 1686 foi construído o primeiro templo hindu em Moçambique. No ano de 1932 foi fundada a Associação dos Trabalhadores Hindus Bharat Samaj. A comunidade dos hindus moçambicanos é maioritariamente originária de Diu e da região do Gujarate, Índia[4]. A associação da Comunidade Hindu de Maputo, embora denominada em 1977, teve outras designações durante o período de ocupação portuguesa (Chhagan, 2003: 43-72).

Segundo Beta, Helena iniciou as práticas de haṭha ioga em Moçambique, no início da década de 1970, na sequência de intervenção cirúrgica à coluna realizada na África do Sul. As aulas foram ministradas pelo instrutor Kaku, um comerciante indiano e praticante da haṭha ioga de Lourenço Marques, hoje a cidade de Maputo. Foi no meio hindu moçambicano que Helena conheceu os ensinamentos de Paramahansa Yogananda, na sequência de um encontro com um Swami alemão iniciado na tradição da kriyā ioga de Paramahansa Yogananda. Beta referiu que Helena e o Swami eram próximos e chegaram a viajar para o Egipto, mas nunca visitaram a Índia. Nessa altura era Helena divorciada e, na sequência dessa amizade, inscreveu-se no curso de kriyā ioga promovido pela Self Realization Fellowship. Este curso é lecionado à distância, através de aulas policopiadas enviadas por correio aos participantes de todo o mundo[5].


A kriyā ioga de Paramahansa Yogananda

Swami Paramahansa Yogananda (1893-1952) foi um monge indiano que ensinou a ioga nos Estados Unidos e na Índia. Fundou a Self Realization Fellowship e a Yogoda Satsang of India, e escreveu o famoso livro Autobiografia de um Yogui. A ioga, na vertente devocional da Bhakti, assumiu importante dimensão na obra deste mestre indiano (Pokazanyeva, 2015).

Após a morte de Yogananda, a instituição Self Realization Fellowship[6] continuou a divulgação do seu legado espiritual. Qualquer interessado pode adquirir as lições de Yogananda, organizadas sob a forma de curso à distância, e aprender a kriyā ioga. Foi assim que Helena teve conhecimento da kriyā ioga.

Yogananda foi discípulo de Swami Sri Yukteswar (1855-1936), guru indiano que viveu em Serampore, Calcutá, e foi membro honorário da Sociedade Teosófica (id.: 108). Para melhor compreendermos as origens da kriyā ioga de Yogananda é fundamental conhecermos melhor os ensinamentos do seu mestre.

No ano de 1894, Yukteswar escreveu a Ciência Sagrada – Kaivalya Darśanam -, com o objetivo de demonstrar a unidade entre as religiões do mundo (Yukteswar, 2011). Muitos dos comentários do autor estabeleceram paralelos entre o hinduísmo e o cristianismo, e a missão para escrever o livro foi-lhe outorgada pelo guru Babaji, considerado pelos seus devotos como um avatar indiano ou cristo-iogue da Índia moderna (id.: 3). Interessa-nos particularmente comparar os ensinamentos sobre a ioga na obra de Yukteswar e a ioga clássica do yogasūtra de Patañjali.

A Ciência Sagrada é composta por quatro capítulos e foi redigida em sânscrito, tal como o yogasūtra de Patañjali. O sūtra três, do primeiro capítulo, reflete a presença da corrente teísta da cosmovisão indiana SāṁkhyaSeshvaravada – em que o criador Parabrahma faz emergir da própria criação o puruṣa e a prakṛti. Concomitantemente, a dicotomia Espírito/Matéria, característica da dualidade cósmica do Sāṁkhya clássico de Iśvarakṛṣṇa vertido na obra Sāṁkhyakārikā, está embutida na Ciência Sagrada. O yogasūtra de Patañjali, por sua vez, está filosoficamente ancorado na cosmovisão Sāṁkhya. No entanto, enquanto na ioga clássica de Patañjali nunca se referem corpos energéticos nem chakras, os versos treze e catorze do primeiro capítulo da Ciência Sagrada utilizam esses conceitos ao definir a fisiologia subtil do ser humano. O aforismo oito, do capítulo quatro, refere o Siddha como um indivíduo santificado. Ora, chakras, corpos energéticos e siddhas são tradicionalmente referidos no âmbito de tradições indianas do Tantra. Existem, portanto, elementos sincréticos originários do Vedānta, do Tantra e da Ioga na obra de Yukteswar. De acordo com o aforismo dezassete do primeiro capítulo, a devoção ao guru é a principal técnica da ioga. O amor é salientado, inclusive, logo no início da criação – verso cinco do primeiro capítulo -, como um aspeto universal do Parabrahma.

Enquanto no yogasūtra de Patañjali o objetivo final – Kaivalya - é a separação entre o Espírito e a Natureza, na Ciência Sagrada o verso dezoito do primeiro capítulo refere que Kaivalya é a união entre o indivíduo e deus. Segundo Yukteswar (2011: 41-47), esta doutrina está de acordo com o ensinamento bíblico presente em João 1:33, e à semelhança do yogasūtra de Patañjali, a Ciência Sagrada refere que as aflições mentais resultam da ignorância e se desenrola em apego, aversão, egoísmo.

Para Yukteswar o ser humano está imerso na ilusão, que é a própria vida material ordinária, mas através da prática é possível a salvação iogue. Patañjali, no sutra 2.1, estabelece as bases da kriyā ioga. Do lado da Ciência Sagrada, os sūtras um a quatro do capítulo três referem as mesmas técnicas: sacrifício ou tapas sob a forma de yajña e estudo ou svādhyāya. Para Yukteswar, o īśvarapraṇidhana de Patañjali é efetuado através da meditação no bija mantra OM. Este mantra é também referido no capítulo I do yogasūtra como um sādhana ou pratica espiritual de contemplação no supremo īśvara.

Yama e Niyama não estão ausentes da Ciência Sagrada pois os aforismos nove a onze, do capítulo dois, referem oito das dez prescrições éticas do segundo capítulo do yogasūtra de Patañjali.

O capítulo três da ciência sagrada, versão curta do capítulo dois - sādhana pada - do yogasūtra, refere técnicas da ioga clássica: postura, respiração, abstração dos sentidos. No entanto, para a Ciência Sagrada de Yukteswar, os aforismos doze a dezoito do capítulo três permitem ao praticante desfrutar dos prazeres da vida de casado e a prática postural da ioga resume-se a uma única postura. Após a satisfação conjugal, preenchidos os mais íntimos desejos matrimoniais, a liberdade do iogue é plena em direção ao samādhi pois não existem mais os entraves do desejo.

Por último, nos aforismos vinte e cinco e vinte e seis do capítulo três, Yukteswar defende que o sistema indiano de castas é composto por quatro estágios que representam a ascensão na vida espiritual.

A vedantização do yogasūtra de Patañjali (White, 2014: 117) terá iniciado antes do ano 1900. O clássico de Vivekananda, Raja Yoga, foi escrito em 1896 e a Ciência Sagrada de Sri Swami Yukteswar foi publicada em 1894. Ambos se baseiam nos aforismos da yoga clássica. No entanto, Vivekananda em 1893 participou no Parlamento das Religiões que decorreu nos Estados Unidos, tornou-se mediático, e foi considerado o pai da renascença vedântica. Yogananda, por outro, visitou os Estados Unidos e a Europa depois da morte de Vivekananda.

A academia anglófona considera Vivekananda o pai da ioga moderna (De Michelis, 2004; Syman, 2010; White, 2014), porém Yukteswar antecipou Vivekananda em dois anos, mas o seu livro Ciência Sagrada não foi de imediato conhecido no Ocidente.

Embora as metamorfoses da ioga moderna estivessem na fase embrionária, na Teosofia de Blavatsky nos finais da década de 1880 (White, 2014: 103-115), o livro Raja Yoga de Vivekananda e o livro Ciência Sagrada de Yukteswar sincretizaram o yogasūtra de Patañjali e paralelamente lhe acrescentaram tópicos do Tantrismo, existindo em ambas as obras o inequívoco objetivo de aproximação das cosmovisões indianas à religião cristã do Ocidente.

A nossa análise sumária ao legado de Yogananda tem por base três obras[7] suas: Autobiography of a Yogi, Sayings of Paramhansa Yogananda e God Talks with Arjuna: The Bhagavad-Gītā. São textos mais conhecidos, em particular o primeiro, e que permitem entender o pensamento hinduísta de Yogananda.

A Autobiografia de um Yogi, escrita em 1946, foi um bestseller internacional. Os quarenta e oito capítulos revelam diversos episódios da sua própria vida, muitos dos quais relacionados com a ioga. Importante para o nosso tema é o capítulo vinte e seis em que Yogananda explica o que é a kriyā ioga: “União (yoga) com o infinito através de certa ação ou rito” (Yogananda, 1946: 231). As técnicas da kriyā ioga devem ser aprendidas com um guru. Segundo o autor, o método permite o rejuvenescimento do cérebro e dos centros energéticos ou chakras dos seres humanos e terá sido originalmente ensinado por Babaji e conhecido por Patañjali e Jesus. O sūtra 2.1 de Patañjali dá-nos a definição da kriyā ioga: consiste em tapas, svādhyāya e īśvarapraṇidhana. Yogananda repetidamente salienta a importância da respiração e relaciona os chakras com o zodíaco. O método permite alcançar o nirvikalpa samādhi, isto é, tem o efeito de aproximar o praticante de Deus. Através das práticas da kriyā ioga o adepto é rejuvenescido e a sua estrutura energética revigorada. A atenção na respiração ritmada é acompanhada de sinais próprios que indicam a evolução no caminho: tranquilidade e paz, atenção focada, vida prolongada e expansão da consciência para alem da realidade visível. O controlo dos sentidos e da respiração permite o domínio das forças vitais invisíveis que amplificam o autoconhecimento e a consciência da relação paradigmática Corpo/Universo.

Yogananda entende que o corpo é o templo do espírito e a sua kriyā ioga, embora diferente dos rituais religiosos ortodoxos, é um caminho rápido para o discernimento espiritual. O iogue desapega-se dos seus desejos através do amor cósmico e torna-se maior do que todos os outros ascetas, conforme o verso VI:46 da bhagavad-gītā (Yogananda, 1946: 232-239).

Constata-se que Yogananda estabelece uma ligação entre a kriyā ioga, a bhagavad-gītā, o yogasūtra de Patañjali e alguns dos Coríntios bíblicos[8]. As posturas da ioga não são relevantes para Yogananda e o prāṇāyāma é fundamental, não como mero exercício respiratório, mas como verdadeiro controlo da energia cósmica e dos vayus internos. O autor afirma que, a certa altura do caminho, o iogue se apercebe de que o corpo é ilusão (Yogananda, 2002: 496-505).

A problemática da epistemologia na cosmovisão sāṁkhya-ioga é limitada pela materialidade da coisa. Um corpo ou qualquer objeto não é negado, existe no espaço-tempo, mas é ilusão do ponto de vista da existência metafísica, uma vez que o intelecto e o espírito apenas podem interagir ao nível da experiência sensorial (Biswas, 2007: 78-79).

Por outro lado, a kriyā ioga de Yogananda é definida no livro Sayings of Paramhansa Yogananda como um antigo método indiano para encontrar Deus (Yogananda, 1952: 21). Embora o enquadramento da kriyā ioga se efetue com referências aos clássicos espirituais indianos bhagavad-gītā e yogasūtra de Patañjali, a imprescindibilidade da aprendizagem com um guru e a devoção que sustenta essa relação remete o método para o campo religioso, uma vez que o objetivo final da kriyā ioga é a realização de deus.

A palavra kriyā, com raiz verbal em kri e também origem da palavra karma não aparece apenas na bhagavad-gītā e no yogasūtra de Patañjali, mas é referida, entre outros textos indianos, no sistema haṭha ioga com o significado de ação de purificação[9](Vishnudevananda, 2008: 52-56).

O objetivo da kriyā ioga de Yogananda consistia em “recarregar a força vital [proveniente] da energia cósmica e a meditação como [um] caminho para deus, através da experiência direta” (Rankin, 2008: 181). No entender de Whicher, a “kriyā ioga foi ensinada por Paramahansa Yogananda como uma forma de rāja ioga” (Whicher, 2000: 316). A experiência transcendental de Yogananda, mediada pelas suas práticas iogues, consistiu em partir do patamar corpóreo e alcançar uma dimensão de consciência universal (Kalamaras, 1997: 9).

Yogananda relaciona os chakras e a força vital com a respiração. A técnica prāṇāyāma permitiria reter o prana no praticante e, por outro lado, esta energia seguiria determinados trilhos internos relacionados com as cinco categorias de ventos internos ou vayus: prana, apana, samana, udana e vyana. Sucede que os vários textos da Índia não são claros sobre se, na origem, a prática da kriyā ioga incluiria ou não a retenção da respiração (Baker, 2018: 338).

Não obstante, Zysk afirma que a relação entre respiração e vayus, com origem védica comum para a ioga e a medicina indiana ayurveda, assume paralelo entre a respiração do ser humano e os ventos atmosféricos do criador brahman. Acrescenta que textos tardios da ioga associam a ideia de energia vital – prana – com movimentos da mente e, a partir do século IV ou V d.C., alguma doutrina da ioga começa por integrar cosmovisões médicas que permitem aos ascetas religiosos uma união ‘saudável’ com deus (Zysk, 1993: 198-213).

Não admira que a ioga moderna assuma uma dimensão de ritual de cura próprio de uma religião secular (De Michelis, 2004: 260). O objetivo dos modernos gurus da yoga indiana passou inicialmente por separar a ioga dos discursos místicos e esotéricos, preferindo a identificação com a perspetiva científica e biomédica, a fim de permitir mais fácil aceitação pelo Ocidente, naquilo que Alter identificou como espiritualismo secularizado (Alter, 2005: 119).


O Espiritualismo em Helena

Espiritualismo é diferente de Espiritismo e, enquanto Helena aprendeu a kriyā ioga em Moçambique, os seus episódios de mediunidade tornaram-se frequentes, conforme esclareceu Beta. Existem evidências de que, já em Portugal, o Espiritismo de Allan Kardec influenciou o pensamento de Helena e do seu Grupo Filosófico Espiritualista Peregrinos do Cosmos.

O movimento espírita está presente em Portugal. Os estatutos da Federação Espírita Portuguesa foram redigidos em 1926. No entanto, Sousa Couto no ano de 1900 havia participado no Congresso Espírita Internacional que se tinha realizado na cidade de Paris. A revista O Espírita, de 1923, e a revista Além, de 1947, são alguns dos exemplos que revelam a atividade do movimento espírita português. Entre 1905 e 1909, Sousa Couto publicou a revista Estudos Psíquicos.

A doutrina espírita ganhou corpo em França no ano de 1857, após a publicação do Livro dos Espíritos por Hippolyte Leon Denizard Rivoil, mais conhecido pelo pseudónimo Allan Kardec. O autor publicou outras obras que, na sua essência, abordam as temáticas do Céu e do Inferno, os tipos de espíritos, a comunicação entre os vivos e os espíritos desencarnados do além, o evangelho do Cristo na perspetiva espírita e muitos outros temas. Em 1864, na cidade de Paris, Allan Kardec publicou o livro O Evangelho Segundo o Espiritismo. A terceira edição, de 1866, foi traduzida para a língua portuguesa em 1944 pela Federação Espírita Brasileira. A versão que consultamos é a nonagésima nona edição da tradução brasileira. O Evangelho Segundo o Espiritismo apresenta vinte e oito capítulos e interpreta a doutrina cristã, do ponto de vista doutrinário do Espiritismo. As reuniões espíritas, acompanhadas de prece e oração, envolvem a canalização de mensagens dos espíritos do além. Essas mensagens podem advir por via escrita – psicografia ou mecanografia -, pela intuição, através de vidência ou pela incorporação onde supostamente o médium ‘empresta’ o corpo e a voz para veicular a mensagem à audiência (Kardec, 1944).

São retratados aspetos do Espiritismo em diversos filmes modernos de Hollywood, como por exemplo, Ghost – O Espírito do Amor com Patrick Swayze, HereAfter do realizador Clint Eastwood, o Sexto Sentido com o ator Bruce Willis.

O Espiritismo pode englobar algum aspeto terapêutico para a alma. Existem encontros anuais de médicos espíritas, realizados em Portugal e no Brasil. O Kardecismo ou Espiritismo está presente no campo religioso brasileiro, por vezes sincretizado com religiões locais de origem africana (Schmidt, 2016: 88-101).

Segundo Abel e Beta, Helena conheceu o Espiritismo em Moçambique, mas foi em Portugal que os seus dons se amplificaram e manifestaram sob a forma de canalização direta de mensagens dos espíritos, perante a audiência dos seus seguidores. Se a kriyā ioga foi uma das práticas utilizadas por Helena, que lhe permitiu a expansão da consciência, os seus ensinamentos foram inspirados na doutrina cristã, mediados pela abordagem e técnicas do Espiritismo de Allan Kardec. No entanto, a sua tendência para o Universalismo, aliada à procura de conhecimentos transversais a outras tradições religiosas e filosóficas, acabou por revelar a importância das tradições orientais que lhe permitiram abrir caminho para sincretismos modernos, já antes preconizados pela Teosofia de Helena Blavatsky.


A influência da Teosofia no Espiritualismo de Helena

As teorias de Franz Mesmer sobre corpos magnéticos e transes são anteriores à Teosofia. Na opinião de Pokazanyeva, Mesmer aproveitou as teorias metafisicas de Newton para sustentar a correlação entre corpos animais e corpos celestes. A doença humana seria devida à falta de harmonia entre a energia humana e a força vital do Cosmos. O Mesmerismo, após o falecimento do seu fundador, continuou sob três formas distintas: a parapsicológica, a médica e a psicológica. A autora acrescenta que, para Yogananda, o magnetismo perde a ligação inicial que tinha com o Mesmerismo e assume uma ligação com as correntes do “Novo Pensamento”, em particular a Lei da Atração que originou na obra de William Walter Atkinson em 1906, conhecido pelo pseudónimo de Yogue Ramacharaca. Sucede que, segundo esta autora, e de acordo com a teoria Espiritualista em formação nos finais do século XIX, as mulheres eram mais propensas do que os homens às capacidades mediúnicas pois eram mais doceis e, paralelamente, os teosofistas emergiram das novas correntes Espiritualistas ocidentais (Pokazanyeva, 2015: 93-126).

Posteriormente, a ramificação de Blavatsky assumiu pendor indo-tibetano. Existem dois tipos de Teosofia: a ocidental e a de matriz orientalizada (Blavatsky, 2015: 9). A Teosofia orientalizada de Blavatsky surgiu em Nova Iorque no ano de 1875. Helena Blavastky, nascida na Rússia, Henry Olcott e William Judge foram os seus fundadores. Após vários incidentes que desacreditaram Blavatsky em Nova Iorque, a Sociedade Teosófica mudou-se para a Índia, no ano de 1883.

Helena Blavatsky revelou capacidades mediúnicas espíritas, procurou ensinamentos transversais a todas as religiões e, na Índia, viria a conhecer as doutrinas da ioga (id.: 13). A fundadora da Teosofia reconheceu, mais tarde, que dois espíritos iluminados dos Himalayas indianos – Koot Hoomi e Morya – lhe haviam transmitido por via mediúnica os fundamentos da doutrina teosófica (ibid.).

Nos finais do século XIX os fundadores da Sociedade Teosófica interessaram-se pela ioga indiana. William Judge, em 1888, publicou comentários ao yogasūtra de Patañjali. Blavatsky, por outro lado, censurou as práticas posturais da haṭha ioga, embora tivesse valorizado a rāja ioga e mostrado estima pelos poderes extraordinários dos iogues (White, 2014: 106).

Conforme as nossas notas da observação participante e documentos recolhidos no terreno, a Lucis Trust é uma organização dedicada à divulgação do pensamento e obra da teosófica Alice Bailey. Helena correspondeu-se com a Lucis Trust de Londres. A organização está igualmente presente nas cidades de Nova Iorque e Genebra. Alice Bailey valorizava a individualidade na sua visão New Age da humanidade. As atividades da organização incluiam, entre outras, a escola dos arcanos, grupos de meditação, explicações sobre reinos angélicos, ensinamentos de Cristo e festivais espirituais.

A rede de triângulos de luz, exercício composto por visualizações em grupos de três pessoas, foi uma das atividades da Lucis Trust que Helena e os seus discípulos portugueses praticaram durante vários anos. Essas meditações, acompanhadas de orações e preces, eram praticadas a horas certas do dia e incluíam o envio de pensamentos positivos para os outros elementos da rede triangular. A atividade de visualização de triângulos de luz não estava acessível a todos os simpatizantes e associados do Grupo Filosófico Espiritualista Peregrinos do Cosmos, atualmente com sede em Linda-a-Velha, Portugal.


A obra de Helena em Portugal

O Grupo dos Peregrinos do Cosmos foi fundado por Helena a 3 de Julho de 1984[10]. Segundo os estatutos, tinha por objetivos a divulgação dos princípios filosóficos correntes no Ocidente e no Oriente; promovia sessões da ioga; promovia ou incentivava as obras que visavam a assistência aos pobres e carecidos e, promovia o desenvolvimento de uma prática de vida correspondente aos princípios filosóficos universalmente aceites. Podiam ser associados as pessoas singulares e as pessoas coletivas. Os associados podiam ser qualificados em membros, caminhantes, peregrinos do cosmos e grandes peregrinos. Os caminhantes eram nomeados pela Direção, de entre os membros, sob proposta do Orientador Filosófico. No entanto, os peregrinos e os grandes peregrinos eram designados em Assembleia Geral, sob proposta do Conselho Geral. A eliminação de associados só poderia ser efetuada na sequência de decisão da Assembleia Geral, sob proposta da Direção e depois de ouvidos o Orientador Filosófico, o Conselho Geral e o associado.

As descrições que se seguem, das afirmações de Helena, de lugares e de eventos, têm por base as notas do diário de campo, resultantes da nossa posição de observador participante ao longo de dez anos.

Na década de 1990 o Grupo Filosófico Espiritualista Peregrinos do Cosmos adquiriu uma antiga vinha com alguns hectares, com adega bastante ampla, casa móvel de apoio e um barracão que continha alfaias agrícolas, na localidade de Aveiras de Cima. A adega foi remodelada e todo o edifício foi restaurado para convívios sociais, especialmente acampamentos de verão e saídas de campo ao fim de semana, ao estilo do ashram indiano. Aqui celebrou-se anualmente equinócios e solstícios, e alguns retiros para jovens. No local nunca chegou a ser implementada uma verdadeira comunidade. Devido à proximidade de Lisboa, talvez Helena e a Direção tenham preferido deslocações de curta duração, entre um a dois dias. Plantou-se arvores de fruto e construiu-se um segundo piso na adega para arrumações e dormidas esporádicas, uma horta, chuveiros e casas de banho exteriores. As ferramentas e as máquinas agrícolas eram guardadas num barracão, localizado por detrás do edifício principal. Embora o centro de Aveiras, localizado no meio do campo, fosse utilizado para as festividades da comunidade, era no Centro de Linda-a-Velha que decorriam as principais atividades do Grupo, como veremos de seguida.

O local das reuniões filosóficas e espiritualistas do Grupo é uma fração predial com dois andares. A loja situa-se na localidade de Linda-a-Velha, não tem cartazes, e Helena nunca quis publicidade ou qualquer outra divulgação do seu trabalho. O Grupo não tem página na internet nem contas nas redes sociais, nem sequer email ou telefone. No andar térreo situam-se a receção, os balneários femininos e o Templo onde decorrem as principais atividades do Grupo. A sala do Templo está decorada com diversos objetos que simbolizam as principais tradições religiosas da humanidade. Além das imagens dos fundadores, existe uma pirâmide em alumínio dourado que é o epicentro das sessões. No piso de baixo está o balneário masculino, o gabinete de tratamentos que é também partilhado pelo Orientador Filosófico, a biblioteca e a casa de banho unisexo, e ainda outra sala mais pequena para algumas reuniões menos formais, sessões espíritas, consultas de aconselhamento espiritual.

As atividades do Grupo em Linda-a-Velha, entre os anos de 1989 e 1999, incluíam aulas para os jovens, escola teórica de conhecimento espiritual, duas reuniões semanais com intervenções mediúnicas, práticas da haṭha ioga e aikido aos sábados de manhã. Anualmente realizava-se um acampamento com treino em técnicas de sobrevivência, semelhante à dos escuteiros, que Helena supervisionava. Além das reuniões semanais, que ocorriam à quinta-feira e eram frequentadas exclusivamente por membros, existiam reuniões reservadas aos membros mais antigos sobre assuntos de mediunidade espírita que incluíam práticas e trabalhos energéticos com posterior debate filosófico.

Os encontros do grupo de jovens, dividido em gatinhantes e caminhantes em função da idade, incluíam a explicação de técnicas de socorrismo, a organização de festividades do Natal, Páscoa, dia da Mãe e outros eventos. As saídas de campo, com exercícios práticos, e os acampamentos anuais eram promovidos por equipas de jovens com tarefas específicas. Cada equipa tinha um monitor responsável que reportava diretamente a Helena e reunia periodicamente com o grupo de supervisores.

As aulas da haṭha ioga, inicialmente orientadas por Helena, consistiam em práticas posturais, de respirações ou prāṇāyāma, relaxamento, mantras e meditações guiadas. A biblioteca do Grupo continha diversos livros da ioga, mas um dos mais utilizados era sobre haṭha ioga do professor brasileiro Hermógenes. As práticas da altura eram muito semelhantes às práticas da atualidade. No entanto, não eram cobrados quaisquer valores nas aulas da ioga nem nas diversas atividades. O financiamento para as despesas correntes do Grupo era proveniente da cotização anual e dos donativos voluntários de alguns associados.

A saudação habitual entre membros do Grupo incluía uma vénia e simultaneamente a pronuncia da palavra indiana namaste. As duas reuniões periódicas semanais para os membros incluíam exercícios prévios de respiração iogue ou prāṇāyāma e iniciavam sempre com o cântico em sânscrito Hari Om Shanti. Enquanto que às terças-feiras eram lidas psicografias escritas por médiuns, a que se seguiam debates filosóficos sobre os mesmos textos, às quintas-feiras as sessões incluíam a partilha verbal de símbolos e insights mediúnicos, ao que se seguia a incorporação e mensagem dos espíritos. Por último, as sessões terminavam com cânticos devocionais.

Helena dispunha a sala conforme a antiguidade dos membros: os jovens de um lado, os membros mais antigos sentados em semicírculo do outro, e os restantes membros sentavam-se em cadeiras ao longo da sala.

Em algumas das tardes realizavam-se consultas com passes magnéticos e de limpeza da aura com incenso, cromoterapia e shiatsu, sessões de despossessão de espíritos e de aconselhamento espiritual.

A escola teórica de conhecimento espiritual, a mais frequentada de todas as reuniões, costumava reunir os membros interessados ao longo de dois sábados por mês. Nestas sessões eram vertidos ensinamentos sobre ioga e espiritualismo em geral. Helena não identificava o grupo que tinha formado como estritamente espírita, mas preferia a designação de espiritualista, talvez por ser mais abrangente e de carácter universalista.

Numa das sessões, a de 30 de setembro de 1990, Helena explicou a sua definição da ioga:

“É uma maneira de viver. Através das posições podemos desfrutar de uma boa saúde. É viver e comungar com Deus. É a ciência que permite o despertar de energias latentes no Homem. A ioga dá elasticidade ao organismo. Através de posições, acompanhadas de respirações [prāṇāyāma], é possível a boa distribuição do prana. A ioga exige uma mutação do modo de vida, uma vida sadia.” Temas como o livre arbítrio, chakras e kuṇḍalinī, canais energéticos e prana, eram também referidos. Quanto ao prana e à energia serpentina kuṇḍalinī, Helena afirmava que:

“O prana é absorvido pela respiração. É força vital ou cósmica, entra em Pingala indo bater no chakra muladhara onde dorme a kuṇḍalinī (...) até chegarem a ambas as nadis ou canais etéricos, passam por fora do corpo físico, portanto dentro da nossa aura. Os antigos magos [que] exerciam a medicina usaram este símbolo para indicar a sua profissão de médico. É também um símbolo iniciático da mais alta significação espiritual [e] conhecido pelo caduceu de mercúrio. (...) Assim, sabemos que prana, a força vital, é responsável pela nossa vitalidade e [portanto] é importante saber respirar bem”.


Os tratamentos por "vibração-cor" não eram menos importantes. Conforme a patologia do individuo, Helena ensinava as várias cores associadas a tratamentos de cromoterapia para os diferentes órgãos do corpo humano.

No dia 4 de Novembro de 1990 a aula versou sobre a localização e funções dos chakras. A evolução energética implica refinamento da consciência e Helena afirmava que “quando se consegue a sublimação da kuṇḍalinī alcançam-se elevadas potencias espirituais”. A abertura do sétimo chakra ou sahasrāra, por exemplo, corresponderia à evolução espiritual total no ser humano e, para Helena implicaria o controlo total da matéria pelo que seria uma das características dos “seres que já possuem supraconsciência”. Nessa aula da escola teórica do conhecimento espiritual, Helena voltou a abordar a temática da kuṇḍalinī ao referir que “é um fogo divino que arde dentro de nós e se move em [forma de] espiral”. Os movimentos da energia kuṇḍalinī seriam influenciados pela qualidade dos pensamentos pois “más ações, ódios, orgulhos e enveja provocam um ciclo kuṇḍalinīco negativo” e afirmou que seria preferível um modo de vida “sem predisposições para pressuposições”.

Em 11 de Novembro de 1990 a aula para o seu grupo de jovens – que eram chamados de SOS – abordou os procedimentos necessários, em casa e no exterior, para o caso de tremor de terra. O ideal para os seus jovens SOS passava por uma ligação comum ao amor, caridade e fraternidade entre os indivíduos. O cumprimento da disciplina era importante para o grupo de jovens e Helena frequentemente recomendava a aceitação das regras propostas e uma organização pessoal equilibrada.

A análise sobre a aula da mente, que decorreu no dia 18 de Novembro de 1990, revelou semelhanças ao modelo teosófico porquanto Helena afirmou que o corpo físico seria denso, designou o corpo vibratório por cascão ou duplo-etérico e o corpo astral seria etérico, “imortal e preso à lei da reencarnação”. A mente contemplaria as dimensões instintiva, intelectual e espiritual, supraconsciente. Esta última só seria alcançada após a “abertura de todos os chakras e [possibilitaria] o contacto com seres superiores”.

Em 13 de Janeiro de 1991, Helena ensinou aos jovens a pequena e a grande circulação, entre outros temas da anatomia humana, e os procedimentos necessários em caso de guerra química, atómica ou biológica.

Helena efetuou formação em socorrismo, exerceu a profissão de tradutora e também de dactilógrafa em Moçambique.

Helena divergiu do Cristianismo não só por aceitar a reencarnação e a existência da vida extraterrestre, mas também quanto ao modelo da criação que defendeu: “O Absoluto é a causa real, o incondicionado, livre de qualquer limitação”. Defendia que a palavra era uma forma fraca e imperfeita de expressar ideias que transcendem a mente humana. Concomitantemente, neste domínio, a doutrina por ela defendida assemelhou-se à teoria hindu do criador Brahman. O Absoluto ou Um no seu todo não poderia ser concebido nem apreendido pela finita mente humana. Para Helena, a perceção mental do Absoluto dependia da própria evolução espiritual do indivíduo. E a teoria hindu de Māyā, professada por exemplo pela cosmovisão indiana do Advaita Vedānta, esteve direta ou indiretamente presente no pensamento de Helena quando afirmou que “O Absoluto é o tudo no todo. Não há nada fora dele porque tudo está nele (...) Ele está no todo e em todas as suas centelhas”. Dito de outra forma, à maneira vedântica, Ātman é Brahman, melhor expresso na mahāvākyam Tat Tvam Asi – Tu és Aquilo[11]. O Absoluto é Um e constante, imutável e eterno. Quando o ser humano se torna espiritual “tem em si o Absoluto e o Absoluto Relativo”, isto é, “...o Eu Real, a chama divina, é envolvida pelo Absoluto Relativo [que é] matéria, energia, mentes, auras”. Enquanto que o Absoluto é a consciência imutável, o puruṣa da cosmovisão indiana Sāṁkhya, o Absoluto Relativo no pensamento de Helena representa a matéria em transformação, melhor dizendo, é a prakṛti do Sāṁkhya.

Na aula de 3 de Fevereiro de 1991, Helena afirmou que existem diferentes dimensões de existência, sendo que a “12ª dimensão já só é Luz”. O seu modelo ontológico, inequivocamente inspirado nos modelos indiano e teosófico, envolvia a evolução das pedras, das plantas e do reino animal, pelo que o objetivo da criação é que todas as criaturas regressem à luz pura ou ao Pai.

Na ioga clássica, Patañjali defende que o caminho do iogue, através da prática de diferentes técnicas e éticas, passa pela ‘desidentificação’ da matéria – prakṛti – e identificação com a consciência imutável ou puruṣa, sendo que o retorno do iogue à sua própria essência poderá significar o regresso ao Pai, na perspetiva teosófica de Helena, viagem que termina com a experiência de Kaivalya ou Mokṣa na denominação indiana.

O pensamento positivo e a sua importância foram ensinados por Helena. A reprogramação mental, à semelhança do que se faz hoje nas modernas técnicas do Coaching e da Programação Neurolinguística, foi referida em março de 1991:

“O pensamento é feito [como uma] máquina cibernética a cumprir metas que lhe sugerimos, por isso não devemos estar constantemente a dizer eu sou um fraco, eu estou doente ou eu não consigo. Porque vai acontecer precisamente isso. Faça uma renovação da sua personalidade”.

Impregnar a mente com boas vibrações poderia ser efetuado através da utilização do mantra, uma vez que “cada um pode ter o seu próprio mantra. O mantra pode ser uma palavra espiritual ou uma frase que através da repetição dá energia positiva à pessoa”. Embora fosse sugerida a utilização do mantra AUM ou OM, parece-nos em aberto a utilização de frases e palavras além do sânscrito. Não há dúvida que Helena sabia e utilizava os mantras indianos, mas a extensão da sua interpretação e aplicação parece dever-se ao enquadramento teosófico que deu às técnicas indianas, à semelhança do que fez Blavatsky.

Helena referiu poucas vezes as suas fontes, mas a correlação que fez entre chakras e planetas do sistema solar encontra paralelo no pensamento de Yogananda. “Cada chakra tem em astrologia o seu planeta correspondente (..) estudando o planeta percebe-se a ação desse chakra no organismo”. Por exemplo, “Vénus ou o planeta do amor, como lhe chama o povo, corresponde o segundo chakra [svādhiṣṭhāna] onde se situam os órgãos sexuais”.

À semelhança do que fez Vivekananda, e depois Yogananda, Helena também relacionou a kuṇḍalinī e energias vitais com a respiração. Sucede que, em vez da tradicional teoria indiana dos cinco elementos primordiais – pancha maha bhoota – Helena afirmou, em 22 de Abril de 1990 que “há quatro elementos primordiais no nosso planeta a que chamamos quatro elementos da natureza: Ar (vayu), Fogo (agni), Água (apas) e Terra (prithvi)”. Estes quatro elementos, unidos à força da mente e movimentados através da respiração permitiriam o movimento dos chakras todos e a consequente transmutação em “energia cósmica mental altamente poderosa com a qual podemos alimentar e purificar a força da kuṇḍalinī (..) e quando isso acontece estamos a ter um encontro com o nosso Eu Real”.

No Grupo Filosófico Espiritualista Peregrinos do Cosmos, teoria e prática da haṭha ioga foram ensinadas de forma sincretizada com as doutrinas sobre a Atlântida, arcanjos e comunicações espíritas, mantra, kuṇḍalinī, chakras e energias subtis.

Ao referir-se, no dia 22 de Setembro de 1991, às regras para atingir a Espiritualidade, Helena baseou a aula que ministrou no autor Yogue Ramacharaca. William Walker Atkinson (1862-1932), advogado e autor ocultista, escreveu vários livros sobre ioga com o pseudónimo de Yogue Ramacharaca e adicionou às suas narrativas iogues conceções teosóficas, esotéricas e biomédicas (Hayes, 2019: 62).

O mantra OM ou AUM foi equiparado, em 13 de Outubro de 1991, à frase bíblica “E no princípio era o Verbo”. Para Helena, o “A será a consciência objetiva do mundo exterior, o U a consciência do mundo interior de cada um e o M será a consciência da unidade diferenciada, que será um estado vazio de magnificência”. Sendo universal, o OM simbolizava o

“estado de supraconsciência da mente onde podeis encontrar ajuda e a realização das vossas aspirações (...) o OM é um som espiritual embora possa estar acompanhado de um som físico. Ele deve ser percebido pela mente, e não [apenas] pelo ouvido, mas também pelo coração (...) OM é a silaba semente do universo e o som da força universal da consciência que alcançou o cume da pirâmide e tudo abrange. É equivalente à omnipresença da consciência da mente universal. Quando utilizarem este som acompanhai o som com profundo respeito mental. Ele é um som divino.”


Em Janeiro de 1992, Helena abordou a kriyā ioga de Yogananda, tópicos sobre a alimentação racional e sobre o poder do som. De acordo com a sua estrutura de crença, as sete notas musicais teriam correspondência com as cores e a cor branca seria “a união de todas as cores [e] um grau abaixo da luz crística”.

Além de ter um grande coração, segundo os entrevistados Abel e Beta, Helena também tinha problemas com ele, há já vários anos. Nos últimos meses de vida arrastava consigo uma botija de oxigénio, sem a qual não sobreviveria mais tempo, o que viria a suceder durante o ano de 1999.

Porém, a sucessão espiritual determinaria um rumo diferente para os ensinamentos do Grupo. A nova orientação espiritual viria a imprimir uma dinâmica doutrinária exclusivamente cristã e espírita, que eclipsou o Universalismo da fundadora que em seu testamento espiritual reconheceu o avatar Babaji como seu mestre, e anteviam um inevitável cisma na comunidade, o qual aconteceria nos anos posteriores à sua morte.


Conclusão

A pesquisa etnográfica revelou algumas das metamorfoses e sincretismos religiosos que estruturaram as crenças e o moderno espiritualismo de Maria Helena Charula de Sousa. As evidências encontradas sugerem que a kriyā ioga de Paramhansa Yogananda, mas também o Espiritismo de Kardec e a Teosofia de Blavatsky, viabilizaram a base doutrinária do Grupo Filosófico Espiritualista Peregrinos do Cosmos. Concomitantemente, em relação à doutrina e práticas da ioga moderna, embora não sejam consideradas como religião nos meios populares, derivaram do hinduísmo, mas do ponto de vista do fenómeno religioso contemporâneo contribuíram para a recomposição e alguma cissiparidade nas modalidades da crença espiritual.


Referências

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Notas [1] Neste trabalho optamos por seguir o novo acordo ortográfico em que o substantivo masculino yoga passou a designar-se pelo substantivo feminino ioga. [2] Preferimos utilizar a designação ‘Estruturas de Crença’ em vez de Religião. O grupo fundado por Helena nunca pretendeu o registo como pessoa coletiva religiosa. [3] A irmã de Helena faleceu recentemente e não nos foi possível obter mais detalhes sobre a juventude de ambas. [4] Os costumes hindus em Moçambique são referidos numa tese de doutoramento de Marta Denise da Rosa Jardim, Cozinhar, adorar e fazer negócio: Um estudo da família indiana (hindu) em Moçambique. [5] Vide https://yogananda.org/lessons ,acedido em 30 de janeiro 2020.

[6] Vide https://www.yogananda-srf.org/ [7] Yogananda também escreveu Whispers from Eternity, Cosmic Chants, The Science of Religion, Scientific Healing Affirmations, The Law of Success, Metaphysical Meditations e How You Can Talk With God. [8]Vide os versos 4.29 e 6.46 do bhagavad-gītā e os aforismos 2.1 e 2.49 do yogasūtra da Patañjali. Nos comentários que faz ao verso 4.29 da bhagavad-gītā, Yogananda identifica a respiração com o controlo dos ventos internos ou vayu. A inspiração e a expiração permitem neutralizar as energias prana e apana. Através das fases do prāṇāyāma – inspiração, retenção e expiração -, o kriyā iogue controla voluntariamente as forças vitais que sustêm a união entre o corpo e o espírito. Podemos extrair um duplo significado de prana ou energia vital no pensamento de Yogananda: em sentido amplo, prana é energia subtil presente na Criação, e em sentido estrito ou técnico, prana é energia vital que mantem unidos corpo e mente. [9] Shatkarma ou as seis ações de purificação estão previstas nos versos vinte e dois até ao trinta e seis do capítulo dois do livro haṭhayoga pradipika. Estas técnicas permitem a limpeza orgânica de certas zonas do corpo humano e podem, inclusive, envolver a utilização de água salgada. [10] Estatutos disponíveis em agc.sg.mai.gov.pt/details?id=576310 [11] As mahāvākyāni do Vedānta, presentes nos upaniṣad védicos, são grandes afirmações que refletem a natureza do ser e da realidade, o papel do indivíduo na terra, entre outros temas metafísicos. A metáfora Tu és Aquilo significa, segundo a cosmovisão não-dual do Advaita Vedānta, que a alma realizada é uma com o próprio Absoluto.


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