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As Relações entre o Yoga Moderno e o Haṭha Yoga Pré-moderno

Atualizado: 12 de abr de 2021


Introdução

O yoga é hoje uma prática transnacional ensinada nos países ocidentais e na Índia. A palavra yoga é polissémica e a compreensão mais profunda do seu significado implica o conhecimento do contexto cultural. Para compreendermos as relações entre o yoga moderno e o haṭha yoga pré-moderno é necessário compreendermos os seus significados, objetivos e características, diferenças e continuidades.

Ao longo de milhares de anos algumas das práticas de yoga foram incorporadas por tradições religiosas tais como o hinduísmo, o budismo e o jainismo. No entanto, na modernidade o yoga é compreendido pela maioria do praticantes como uma prática secular mas para alguns académicos que estudam religião esta perspetiva pode ser muito diferente.

O nosso objetivo com este trabalho é revisitar alguns conceitos e ideias de yoga e argumentar que a flexibilidade e maleabilidade da cosmovisão Yoga é patente ao longo da história e permitiu a metamorfose e a expansão desta prática na época moderna.


Haṭha yoga pré-moderno

A palavra haṭha tem raiz verbal em “haṭh” que significa força mas é comum a ideia entre os praticantes de yoga que “ha” significa lua e “ṭha” significa sol, conceito encontrado pela primeira vez no texto medieval yogabīja (Birch, 2011). Tradicionalmente as posturas eram entendidas como um assento para a prática de meditação e prāṇāyāma mas a partir do início do segundo milénio começaram a surgir posturas mais complexas não sentadas nos primeiros manuais de haṭha yoga (Mallinson & Singleton, 2017: 86-93). O texto Amṛtasiddhi foi o primeiro a codificar algumas das práticas do haṭha yoga (Mallinson, 2018) e provavelmente a ausência de dogmas metafísicos contribuiu para o sucesso do haṭha yoga pré-moderno (Mallinson, 2014: 238). Com base nas ideias contidas em alguns upaniṣads antigos e em literatura do tantra o sistema haṭha yoga adotou a ideia do corpo energético ou subtil. A partir daí desenvolveu-se um conjunto de técnicas com o objetivo de disciplinar o corpo físico e manipular as energias do corpo subtil.

O corpo subtil inclui canais energéticos ou nāḍī, cakras ou centros de consciência e a energia criativa ou kuṇḍalinī que são estruturas energéticas não visíveis a olho nu. Por outro lado, o termo bindu poderia significar sémen, mas não só. Inspirado nas ideias do tantra, o objetivo da prática de haṭha yoga medieval era fazer ascender a kuṇḍalinī até ao topo da cabeça e evitar a perca do bindu para preservar a longevidade do praticante mas também para lhe conferir poderes metafísicos.

Na época medieval não existiam aulas nem tapetes de yoga e as práticas foram construídas, praticadas e transmitidas por homens de acordo com o instituto guru kulam.

Algumas das práticas do haṭha yoga foram utilizadas para fins religiosos pelo menos um milénio antes dos primeiros textos sobre o sistema haṭha, nomeadamente o prāṇāyāma, eram consideradas técnicas relacionadas com tapas ou calor ascético (Mallinson, 2020). No mesmo sentido Birch (2020: 233) afirma que “It is likely that Haṭha- and Rājayoga arose independently as non-initiatory practices that were ancillary to various religions”.

Mas não podemos esquecer que no yogasūtra de Patañjali (2.46-8) o āsana era uma condição sentada para práticas mais subtis de prāṇāyāma, dhāraṇā, dhyāna e samādhi. Sabemos que o haṭha yoga teve no seu início influência do budismo tântrico vajrayāna mas muito provavelmente também o yoga sūtra de Patañjali tem influências budistas (Wujastyk, 2018).

Algumas das práticas do haṭha yoga pré-moderno tinham o propósito de evitar a ejaculação pois o sémen era considerado um fluido sagrado e acreditava-se que o seu desperdício trazia fraqueza e decadência ao praticante.

Contudo o sistema haṭha tem outras disciplinas além do āsana e do prāṇāyāma tais como o mudrā e o bandha que têm o propósito de redirecionar o prana ao nível do canal central ou kuṇḍalinī. O compêndio Haṭhapradīpikā, um influente texto provavelmente escrito no século XV, trouxe alguma luz à dispersão de técnicas de haṭha existentes no diferentes textos medievais indianos como por exemplo o Amanaska, o Gorakṣaśataka e o Vasiṣṭhasaṃhitā. Svātmārama, o compilador do Haṭhapradīpikā de certa forma inovou pois acrescentou às técnicas do haṭha yoga um capítulo sobre ṣaṭkarma ou purificações orgânicas e conceitos da medicina ayurvédica tais como doṣa, dhātu e guṇa. O haṭha yoga preconiza a transcendência através de práticas vigorosas e de técnicas que permitem o controlo do corpo. Se no sistema de Patañjali a palavra yoga poderá significar “separação” entre puruṣa e prakṛti no sistema haṭha pré-moderno a palavra yoga significa “união”, por exemplo entre Śiva e Śakti na tradição tântrica hindu e que implicava um certo tipo de êxtase. Não temos dúvidas que o sistema de haṭha yoga pré-moderno se destinava aos homens de algumas castas que pretendiam alcançar a libertação espiritual, isto é o mokṣa ou nirvana.


Yoga Moderno

O conceito e as tipologias de “Yoga Moderno” foram desenvolvidas por Elisabeth De Michelis. A autora caracteriza as raízes do yoga moderno e refere a importância da cosmovisão Vedānta, da obra de Vivekananda e do ocultismo ocidental na reconstrução da teoria e prática do yoga moderno (De Michelis, 2004). Embora se apontem duas datas para o início do yoga moderno, é a partir de Vivekananda que se estabelecem as bases do yoga moderno. A autora adianta possíveis relações entre o yoga, a medicina alternativa e a religião New Age, seguindo de perto as ideias de Hanegraaf (1998). Literatura importante sobre o yoga moderno são os livros de Alter (2004), que retrata o yoga na Índia moderna numa perspetiva antropológica, e na perspetiva histórica os de Singleton (2010; Singleton & Byrne, 2008). A monografia Yoga Body(Singleton, 2010) aborda as metamorfoses e os sincretismos que ocorreram nas práticas posturais e a influência da cultura física no yoga moderno postural, antevendo uma possível divisão de acordo com o género: um yoga masculino e musculado dos body builders e ginastas e um yoga feminino influenciado pela indústria do fitness e da beleza como constatamos através da observação atenta das capas da revista Yoga Journal e pelo ideal da “yoga girl”: a rapariga branca com corpo magro e flexível tal como veiculado na propaganda das redes sociais.

Embora De Michelis (2004: 188) proponha uma tipologia para os subtipos do Yoga Moderno parece-nos que é o Yoga Moderno Postural – MPY - a variante com maior proximidade ao haṭha yoga pré-moderno. Como sucede frequentemente nas inovações culturais, parece que o Yoga Moderno é uma amálgama híbrida que apresenta semelhanças e descontinuidades com o haṭha yoga que lhe antecedeu.



Relações entre o yoga moderno e o haṭha yoga pré-moderno

Com algumas exceções, o haṭha yoga medieval era um sistema para homens praticado preferencialmente em lugares remotos e afastados dos centros urbanos onde a tradição paramparā e a interação entre o guru e o discípulo eram fundamentais para a transmissão dos conteúdos práticos. Atualmente o haṭha yoga moderno é um produto popular, maioritariamente praticado por mulheres brancas residentes nas cidades e a transmissão dos conteúdos é feita num contexto transnacional com a fotografia, o vídeo e a internet a alavancaram a mensagem dos modernos gurus para as audiências internacionais. Talvez devido aos escândalos sexuais e à individualidade e empreendedorismo de alguns gurus modernos é previsível no curto prazo uma mudança de paradigma na transmissão do yoga moderno postural no Ocidente onde o guru yoga cede o seu lugar ao yoga pós-linhagem (Wildcroft, 2020).

No período do haṭha yoga pré-moderno só acediam aos textos os indivíduos que sabiam sânscrito e pertenciam e certas castas, mas na contemporaneidade basta saber inglês para aceder a complexos manuais académicos sobre yoga e meditação (Newcombe & O´Brien-Kop, 2021).

Uma prática comum nos estúdios e escolas do yoga moderno postural é a sequência da saudação ao sol ou sūryanamaskār provavelmente inventada pelo rajā de Aundh no século XX (Singleton, 2010: 102), modificada pelo body builder Iyer e tornada em elixir para a mulher moderna (Goldberg, 2016: 265-284).

Na academia existem autores que defendem a possibilidade da mercantilização da espiritualidade moderna em substituição das religiões tradicionais (Carrette & King, 2004) e possivelmente a venda de yoga poderá enquadrar esse paradigma (Jain, 2015). Existem cada vez mais produtos inovadores para os consumidores modernos como por exemplo yoga com animais, o naked yoga e o goat yoga, mas algumas técnicas mantêm uma ligação com o haṭha yoga pré-moderno nomeadamente alguns āsanas e prāṇāyāmas descritos no manual Haṭhapradīpikā e em textos medievais do haṭha yoga do século XII ao século XVIII. No entanto, as sequências e coreografias acompanhadas de faixas musicais que existem em alguns estúdios de yoga são inovações modernas, muito embora o manual Haṭhābhyāsapaddhati do século XVIII tenha sido o percursor ao descrever algumas sequências de posturas (Birch & Singleton, 2019). No haṭha yoga pré-moderno encontramos a crença no corpo subtil, mas no yoga moderno postural é o corpo físico que se revela importante. A medicalização nas narrativas sobre yoga moderno postural e as afirmações sobre o desenvolvimento pessoal predominam nos discursos das escolas e estúdios de yoga.

O yoga moderno postural é o subtipo de yoga moderno mais praticado no mundo ocidental e para a maioria das praticantes não existem preocupações com o corpo subtil, mas sim com a estética e a beleza corporal. No entanto, embora as linguagens vão sofrendo metamorfoses parece-nos que as ideias de sagrado e profano foram reatualizadas sob uma narrativa secular. Entre crenças, discursividade e identidades especificas, para muitos praticantes o corpo é ainda visto como um templo ou veículo para alcançar o sagrado e o ritual – a prática de yoga no tapete - continua a mediar a passagem do mundo ordinário para um lugar extraordinário que já não se localiza no além mas reside no mais profundo e autónomo Self pós-moderno.

Parece-nos que o mercantilismo associado ao yoga moderno postural nas sociedades ocidentais é apenas um perspetiva superficial para compreender a transformação no yoga, nomeadamente as representações e significados mais profundos subjacentes às práticas. Por outro lado, a apropriação cultural do yoga não é algo que ocorre exclusivamente nas sociedades anglófonas mas é um fenómeno observável à escala transnacional. Conforme argumentámos no inicio do texto, concluímos que o yoga moderno postural soube manter a flexibilidade e a maleabilidade, bem como a continuidade da inexistência de dogmas metafísicos rigidos, características também encontradas no haṭha yoga pré-moderno.

Conclusão

O haṭha yoga medieval era antissocial, praticado em lugares remotos maioritariamente por homens. A soteriologia inerente (i.e. a finalidade) parte do o corpo subtil e detém-se na salvação do espírito: yoga significa união com a divindade, seja um forma de shiva ou de visnu.

Já quanto ao yoga moderno este é um produto social, do capitalismo pós-moderno, foi apropriado pelas industrias do fitness, da beleza e da dança, é praticado nas cidades e maioritariamente por mulheres brancas, de classe média / alta. Existe uma medicalização das narrativas do Yoga Moderno que serve os propósitos da terapia, do desenvolvimento pessoal, da auto-ajuda, e em alguns casos, de busca espiritual.



Bibliografia

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Birch, J. (2011). The Meaning of haṭha in Early Haṭhayoga. Journal of the American Oriental Society, 131(4), 527–554.

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Carrette, J., & King, R. (2004). Selling Spirituality: The Silent Takeover of Religion. New york: Routledge.

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Mallinson, J. (2018). The Amṛtasiddhi: Haṭhayoga’s Tantric Buddhist Source Text. In D. Goodall, S. Hatley, H. Isaacson, & R. Srilata (Eds.), Śaivism and the Tantric Traditions: Essays in Honour of Alexis G.J.S. Sanderson. Leiden: Brill.

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Wildcroft, T. (2020). Post-Lineage Yoga: From Guru to #metoo. Sheffield: Equinox Publishing Ltd.

Wujastyk, D. (2018). Some Problematic Yoga Sūtra-s and Their Buddhist Background. In K. Baier, P. A. Maas, & K. Preisendanz (Eds.), Yoga in Transformation: Historical and Contemporary Perspectives. Vienna: Vienna University Press.



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