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Yoga Como Cultura

A Transposição da Convenção da Unesco para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial no Ordenamento Jurídico Português.


Introdução O presente texto é uma reflexão pessoal, redigida na tarde do dia 31 de agosto de 2019, aborda processos e dinâmicas próprias do yoga nas sociedades modernas. Introduz alguns aspetos culturais do yoga como espiritualidade do povo indiano e defende a ideia de que o yoga, após processos de aculturação e sincretismos ocorridos nas sociedades modernas, faz parte da cultura de cem mil portugueses. Abordamos a questão da transposição para o ordenamento jurídico nacional da convenção da Unesco para a salvaguarda do património cultural imaterial. Pelo facto de inexistir legislação sobre a atividade profissional do ensino do yoga em Portugal, há pelo menos sessenta anos, propomos que o enquadramento jurídico da atividade profissional do ensino do yoga e da meditação em Portugal seja da competência do Ministério da Cultura.


Aculturação do yoga em Portugal O yoga, “ioga” no novo acordo ortográfico, surgiu há milhares de anos e, tradicionalmente, é entendido por muitos como uma cosmovisão indiana, constituída por um conjunto de disciplinas práticas. O yoga promove a saúde e o bem-estar holístico, como ponto de partida para uma vida espiritual saudável e harmoniosa. O objetivo do yoga, na antiguidade indiana, consistia em remover ou diminuir o sofrimento humano, o seu caminho é eminentemente prático e inclui a vivência de princípios éticos, como por exemplo, o da não-violência, física, verbal e mental. No entanto, a metamorfose e a aculturação do yoga que aconteceram nas modernas sociedades ocidentais e também em Portugal originou, de certa forma, uma sobrevalorização da fisicalidade e da terapia em detrimento das dimensões ética e espiritual. Se, por um lado, civilização e cultura estão em constante mutação – na atualidade poucos acreditam que o yoga praticado na contemporaneidade seja igual ao da antiguidade indiana ou tibetana (porque a Civilização, o Espaço e o Tempo mudam constantemente) -, por outro lado, as práticas posturais do yoga emergem em Portugal num período tardio, quando comparado com os acontecimentos em outros países europeus. Os missionários portugueses “redescobriram” o yoga no Malabar indiano, no início do século XVI. Na década de 1930, surgem em Portugal as primeiras publicações sobre yoga. Fernando Pessoa, por via dos seus conhecimentos provenientes da Teosofia, conheceu os estados contemplativos derivados da meditação yoguica. A prática de meditação raja yoga era efetuada em grupo (de forma secreta, devido à polícia política do regime), em Lisboa, na década de 1960.

O yoga, tradicionalmente praticado por homens, sofre uma inversão paradigmática, a partir do ano de 1973, com as mulheres portuguesas a assumirem a vanguarda, até aos dias de hoje, do ensino do moderno yoga postural.

Atualmente, o yoga português (que é ensinado em Portugal) é praticado em diversos locais: escolas, universidades, empresas, prisões, entre outras instituições públicas e privadas. Valoriza-se, na nova composição yoguica moderna, a fisicalidade, a terapia físico-mental e o desenvolvimento pessoal.

Sucede que a aculturação moderna do yoga indiano em Portugal poderá ter dinâmicas semelhantes àquelas que ocorreram com a exportação da cultura religiosa portuguesa do século XVI, perpetuada pelo padroado português na Índia. Relatos de conversão de yoguis (jogues) à fé Católica, na região de Goa, constam da documentação do padroado português do Oriente e da Documenta Indica, dos Jesuítas. Por outro lado, a acelerada importação cultural do yoga em Portugal não originou diretamente nos gurus indianos, mas foi causada por movimentos de emancipação da mulher e principalmente pela fragmentação ocorrida na cultura religiosa dominante, após o fim do regime fascista, surgindo na contemporaneidade diferentes opções de espiritualidade de matriz oriental.

A remoção de conceitos religiosos e a perca da relevância da união com deus (īśvarapraṇidhana), presentes no texto de yoga clássico de Patañjali, acompanhados por processos sincréticos da New Age, permitiram a ressignificação dos bens soteriológicos yoguicos: a salvação/iluminação (mokṣa, nirvana, kaivalya)  deu lugar ao bem-estar e ao desenvolvimento pessoal. Porém, este último, na opinião de Wouter Hanegraaff, é também resultante de metamorfoses religiosas modernas, embora foram todos alavancados pela Secularização.


Yoga Como Cultura A palavra latina “cultura” originou , a partir do século XVIII, a ideia moderna de cultura. Significando originalmente bocado de terra cultivada, hoje a palavra cultura é polissémica. Se cultura e civilização são conceitos afins, deve-se a Edward Tylor a primeira definição etnológica de cultura que inclui crenças, moral, artes, língua, direito e costumes, entre outras competências adquiridas pelo Homem enquanto ser social.

Cultura popular, cultura das elites, do direito e dos tribunais, cultura política ou dos autores, cultura futebolística, cultura yoguica, e muitas outras, são variadíssimas aceções do que poderíamos designar como culturas que exprimem a identidade de um grupo, comunidade ou povo. Aculturação e multiculturalidade são processos importantes e complexos, mas não são abordados nesta curta reflexão.

Voltando ao yoga e à meditação, estas práticas representam aspectos culturais da espiritualidade do povo indiano e contêm uma mundivisão subjacente, há evidências de que as técnicas foram assimiladas por alguns grupos minoritários portugueses há vários anos (sessenta, pelo menos) e, concomitantemente, embora inicialmente integrado em movimentos de contracultura (os hippies, os Beatles, os movimentos femininos), o yoga indiano atualmente afirma-se na cultura espiritual secular de alguns grupos portugueses.

O Património Cultural Imaterial no Ordenamento Jurídico Português Algumas ideias interessantes, embora diferentes do ponto de vista que atualmente defendemos e em linha com a presente reflexão, sobre um possível critério para regular as atividades do yoga em Portugal pode ser encontrado no Capítulo 6 da minha dissertação de mestrado. Por outro lado, a título de exemplo, na França, as atividades do yoga e meditação foram enquadradas no ministério da cultura e não na educação física. Contudo, no ano de 2016, a Unesco inscreveu o yoga na lista representativa do património cultural intangível da humanidade.

A Convenção da Unesco para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, do ano 2003, cujos princípios estruturantes foram transpostos para a ordenamento jurídico nacional (Decreto-Lei nº139/2009 de 15 de junho, Decreto-Lei nº149/2015 de 4 de agosto, Portaria nº196/2010 de 9 de abril) enformam o regime jurídico de salvaguarda do património cultural imaterial. A legislação nacional refere a importância do artigo 2º da Convenção da Unesco, de 17 de outubro de 2003, que define o conceito sobre “património cultural imaterial”. De acordo com o nº1, do artigo 2º da Convenção, podem enquadrar-se no conceito de património cultural imaterial “…as práticas, representações, expressões, […] que as comunidades, grupos e, eventualmente indivíduos reconhecem como fazendo parte do seu património cultural. […]”.


Conclusão O yoga (a ioga) engloba diferentes técnicas físicas, mentais e espirituais, praticadas por cem mil portugueses, é considerado cultura imaterial da Humanidade diretamente pela Unesco e indiretamente pelo Estado português que transpôs os princípios da Convenção para o ordenamento jurídico nacional. Pelo exposto, sugerimos que o enquadramento jurídico e fiscal das atividades profissionais do yoga e da meditação em Portugal seja semelhante às demais atividades culturais, sob alçada do Ministério da Cultura.

O movimento do yoga português caracteriza-se por marcas específicas, próprias de uma cultura em afirmação, há várias décadas. Muitos praticantes são vegetarianos e outros olham reflexivamente o corpo e a mente, acreditam na reencarnação, dão importância à terapia e ao bem-estar individual e social, ao desenvolvimento pessoal, modelam os seus comportamentos sociais, preocupam-se com a Ecologia e com o planeta. Estas, entre outras, são algumas das características genéricas dos indivíduos que adotaram a cultura yoguica como filosofia prática de vida.


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